Há dois pontos, nas críticas dos empresários paulistas à construção da usina de Tubarão, que merecem ser meditados pelo país. Tentou-se justificar a implantação de gigantescos projetos no país pela necessidade de obter dólares, para acelerar o crescimento e pagar a dívida externa. No caso de Tubarão, a exportação de minério de ferro, mais barato, seria substituída pela exportação de placas, de maior valor no mercado mundial. Mas para produzir essas placas é preciso importar carvão, que custa quatro ou cinco vezes mais que o minério de ferro. Esse, o primeiro ponto. Além disso, toda a infra-estrutura – fornecimento de energia elétrica, rodovias, ferrovias, porto — para permitir a produção e seu escoamento custaria 2,7 bilhões de dólares, isto é, mais do que a própria siderúrgica em si, orçada em 2,0 bilhões de dólares. Moral da história: os planejadores da época do milagre só sabiam fazer contas de somar, e não de subtrair. "Somavam" sempre os dólares que iriam entrar no país com a venda futura da produção dos projetos megalômanos, e nunca subtraíam os dólares que iam sair com a implantação do projeto. Esse fenômeno tem importância fundamental, pois joga por terra todos os mitos criados em torno da inevitabilidade do crescimento da dívida externa do país. Mostra, em resumo, a necessidade de revisão imediata do modelo, antes que o Brasil se veja novamente em regime de concordata diante dos credores internacionais, como esteve tantas vezes nos últimos anos (as condições impostas pelos sócios estrangeiros no próprio projeto de Tubarão mostram como o Brasil, por causa de sua dívida externa, esteve várias vezes com a corda no pescoço, forçado a submeter-se a imposições humilhantes, de espoliação mesmo).
Aritmética vesga. Já se disse aqui, meses atrás, que os tecnocratas oficiais que afirmam que "mercado interno não fecha balanço de pagamentos" estavam mentindo à nação, ou incorrendo no erro elementar de só adotar a aritmética das adições, e não a das subtrações. Aquela frase pretensamente espirituosa procurava lembrar à opinião pública que mercadorias vendidas no mercado interno não geram dólares, isto é, não ajudam a acertar as contas internacionais do país – e ele tem uma dívida externa a pagar. Mas, quando se faz as contas corretamente, pode-se ver que os grandes projetos de exportação é que, em lugar de "fechar o balanço", alargam o precipício da dívida externa. E, opostamente, medidas voltadas para o mercado interno podem poupar dólares nas importações, isto é, podem efetivamente "somar dólares" para o país. Por exemplo: investimentos maciços no transporte ferroviário de cargas e passageiros, ou nos sistemas de metrô ou mesmo ônibus das grandes capitais levarão forçosamente a uma economia apreciável de petróleo, isto é, de dólares.
De alto a baixo. O "caso Tubarão", pela repercussão que vem alcançando, pode ajudar o país a descobrir que ele deve repensar imediatamente seu modelo de desenvolvimento para não viver com sua soberania ameaçada pelo pesadelo da dívida externa. E também porque, com essa revisão, o desenvolvimento econômico poderá ser feito de forma equilibrada, resolvendo-se simultaneamente problemas que hoje geram tensões sociais no país. Mais uma vez, é preciso repetir o que se disse aqui: esta é a oportunidade de ouro para tal revisão, exatamente porque o país conseguiu alguma "folga" em relação à sua dívida externa, a médio prazo — frise-se. A afirmação parece absurda a muitos analistas, mas o problema é que tais analistas padecem de um santo horror à realidade, e aos números, fazendo raciocínios em cima do vazio. Seu horror à realidade os impede de identificar oportunidades de mudanças, de fazer propostas que situações novas tornam plenamente factíveis.
A grande chance. Com a sobra de dólares no mercado mundial, o Brasil já acumulou reservas da ordem de 9,5 bilhões de dólares, podendo, até o final do ano, ultrapassar os 11,0 bilhões de dólares. Lógico que serão empréstimos, que terão que ser pagos no futuro. Lógico, ainda, que eles custam caríssimo à nação, ao seu povo, que trabalha para pagar as prestações e os juros da dívida, contraída, em grande parte, sem necessidade – ou para alimentar a especulação financeira. Mas (e por isso mesmo), com as reservas a esse nível, a dívida líqüida do Brasil (total a pagar menos reservas disponíveis) para os próximos três anos acusa sensível alívio. Mesmo que o pais tenha a pagar de 16 a 18 bilhões de dólares nestes próximos três anos, em amortizações da dívida, ele já teria 11 bilhões em caixa, isto é, não precisara obter mais que 5 a 7 bilhões de dólares no mercado mundial – em três anos –, para atender a esse compromisso, numa média de 2,0 a 2,5 bilhões de dólares por ano. Uma chance única para quebrar o círculo vicioso da dívida externa/projeto megalômano voltado para a exportação/maior dívida externa.
Planos prontos. A mudança do modelo implicaria redistribuir a renda, ampliar o mercado interno, abandonar a ênfase às exportações (questões hoje tão conhecidas que é ocioso falar nelas). Essa reviravolta não exigirá estudos demorados, diagnósticos complicados — tempo, enfim. Por menos que a nação tenha acreditado nisso, houve uma abertura, nos dois últimos anos, para o debate também dos temas econômicos. As distorções do modelo brasileiro, e os caminhos para corrigi-las, estão plenamente diagnosticados em trabalhos do Ipea, na área oficial, e nas conclusões da Conclap — Conferência das Classes Produtoras —, na área empresarial, ou ainda nos estudos realizados pelo BNDE juntamente com a classe empresarial. Tudo que o país precisa é levá-los a sério, com rapidez, cuidando de sua implementação. Definida a sucessão presidencial, técnicos do próximo governo deveriam passar a trabalhar imediatamente, em colaboração com os autores daquelas propostas — e também com os representantes dos diversos segmentos sociais — para o estabelecimento de diretrizes que permitam sua pronta execução.
A urgência. Neste momento, os produtores de mandioca de São Paulo enfrentam uma crise, por falta de mercado. Sobra leite e queijo. O açúcar é exportado com prejuízo de 135 dólares a tonelada (prejuízo acumulado no ano: 127,6 milhões de dólares), pois não teria colocação no mercado interno. Sobra pescado. Como sobrou arroz em 1976, carne, milho e feijão em 1977. Como sobrará café em futuro próximo. O problema do Brasil não é falta de recursos para produzir – justificativa apresentada para "atrair" capitais estrangeiros, aumentando a dívida externa. É de falta de mercado para consumir o que é produzido, permitindo um crescimento sem altos e baixos. Sem dívida. Com soberania.