Mais que o início de um novo ano, o que leva o país a debater o futuro próximo de sua economia é a iminente mudança de governo. A nação precisa, por isso mesmo, neste momento, estar atenta, atentíssima, ao ressurgimento do falso dilema que lhe é eternamente colocado, a saber, "renunciar ao crescimento para combater a inflação, ou manter altas taxas de crescimento e aceitar taxas elevadas de inflação?" A "inflação do chuchu", em 1977, a "inflação da cebola e da carne", em 1978, já deveriam ter sido mais do que suficientes para demonstrar que o fenômeno inflacionário, no Brasil, tem também motivações muito simples (especulação, poder de pressão de grandes grupos, conivência oficial com esse poder de pressão etc). Deveriam ter enterrado, de uma vez por todas, as sofisticadas teorias econômicas invocadas para explicá-lo — e, por extensão, também os mecanismos destinados a "esfriar" a economia a pretexto de evitar a alta de preços. Infelizmente, esse enterro ainda não aconteceu — e o falso dilema ressurge mais forte do que nunca, neste momento, ante os reajustes de preços decididos pelos países da Opep. Por incrível que pareça, o primeiro passo para a nação agir com clareza, neste ano novo em que se inicia também um novo governo, é vacinar-se contra outra falsidade, outro mito: o PIB.
Espelho falso. Já se falou nesta distorção, aqui, em outras ocasiões. A nação brasileira – e mesmo os seus segmentos oposicionistas –, apesar de todas as críticas que tem feito à mentalidade tecnocrática, absorveu, incorporou algum de seus vícios de comportamento. Um dos mais graves, sem dúvida, é a preocupação com o PIB, isto é, com o crescimento estatístico da economia. Já foi dito, centenas de vezes, que o PIB é uma ficção e não dá, em hipótese alguma, uma ideia real da "saúde" da economia. Ele, simplificadamente, é a soma dos valores dos bens produzidos dentro de um país. Assim, num exemplo extremo, se for inaugurada uma fábrica de uísque que produza 100 mil litros, no valor de Cr$ 1.000,00 o litro, ou Cr$ 100 milhões no total, o PIB "crescerá", naquele ano, em 100 milhões de cruzeiros. Se, nesse mesmo ano, um desastre climático qualquer provocar a perda de 100 mil sacas de cebola, a Cr$ 100,00 a saca, o prejuízo total dos produtores será de Cr$ 10 milhões – e o PIB decrescerá nestes Cr$ 10 milhões. E daí? Levando-se em conta somente a fábrica de uísque e os produtores de cebola, o PIB crescerá Cr$ 90 milhões, isto é, o acréscimo de Cr$ 100 milhões da nova fábrica, menos o decréscimo de Cr$ 10 milhões das 100 mil sacas de cebola. Como se vê, um crescimento totalmente ilusório, que não retrata os problemas de perda de renda de dezenas de milhares de produtores. Ou mais claramente ainda: o que importa não é a velocidade com que o PIB cresce, e sim de que forma o produto, o resultado desse crescimento (a renda, em outras palavras) está sendo distribuído. Produtos de alto valor que comecem a ser fabricados no país graças a um novo investimento industrial podem "inchar" o PIB, sem grandes efeitos multiplicadores sobre a economia. Inversamente, produtos de pequeno valor cuja produção aumente velozmente têm pequeno efeito sobre o PIB — embora possam estar contribuindo para acelerar a geração de empregos e a melhoria na redistribuição da renda, com efeitos multiplicadores altamente benéficos para a economia, a médio e longo prazos.
Erro de todos. Insiste-se em mostrar a falsidade do PIB porque, infelizmente, o país perdeu o hábito de perguntar-se "como crescer?" ou "a quem o crescimento deve beneficiar?" Esquece-se, com assustadora frequência – ou sempre, pode-se dizer –, que uma taxa de crescimento de 3% pode ser ótima e uma taxa de crescimento de 10% pode ser péssima, tudo dependendo da forma como esse crescimento contribui para a solução ou agrava problemas da economia (ou mesmo da sociedade brasileira). A produção de automóveis de luxo de altíssimo valor, pode "inchar" o PIB – e aumentar os gastos em dólares com a importação de matérias-primas e petróleo. A produção de tecidos de algodão de valor comparativamente baixo pode criar empregos em larga escala, inclusive na agricultura – e reduzir as importações de têxteis.
Sem consciência. Quando se raciocina somente em cima de índices estatísticos, acaba-se perdendo o contato com a realidade. A tecnoestrutura tem até um argumento de fundo "social" para defender o crescimento do PIB, a taxas altas, a criação de empregos. Mas essa canoa é furada, e, infelizmente, mesmo os segmentos oposicionistas da sociedade brasileira freqüentemente embarcam nela, sem se aperceberem de que estão cometendo grave equívoco, endossando outro mito absolutamente odioso. No mundo das estatísticas, os tecnocratas procuram “medir” tudo. Então, apuraram que, quando o PIB cresceu 4% ao ano, foram criados, suponha-se, 1,5 milhão de empregos; com um crescimento de 7%, o mercado de trabalho ofereceria mais 2,5 milhões de vagas; com taxas de 10%, as vagas iriam a 3, 5 milhões, e assim sucessivamente. Ora, essa relação entre crescimento do PIB e oferta de empregos é absolutamente falsa. O próprio exemplo da cebola e do uísque mostra que uma única fábrica pode "inchar" o PIB, apesar de estar criando 100 ou 200 empregos, apenas. Assim, é fácil entender que o PIB do país pode até crescer a taxas consideradas "baixas" e, no entanto, estar resolvendo o seu principal problema econômico-social: o alargamento do mercado de trabalho e a criação de renda de forma melhor distribuída (o que, repita-se, terá efeitos altamente positivos também sobre o crescimento da economia, nos anos seguintes). Infelizmente, a cada vez que se procura rediscutir os problemas da economia brasileira, surge a grita — até bem-intencionada — contra os riscos do menor crescimento do PIB, por causa do mercado de trabalho. Esse mito precisa ser abandonado, de uma vez por todas, pelos setores mais lúcidos da sociedade brasileira.
Novo ânimo. O que o país precisa fazer, éóbvio, é rediscutir prioridades e verificar em que áreas investir para resolver seus problemas mais prementes. Os setores com capacidade de gerar novos empregos em larga escala, mesmo que não contribuam para o inchaço do PIB, devem estar em primeiríssimo plano. Os outros devem ter investimentos moderados, principalmente quando altamente dependentes de importações. Feita essa opção, o país poderá dedicar-se tranqüilamente à luta contra a inflação, que não é o "bicho de sete cabeças" em que se fala, quando encarada com senso de realismo.